sábado, 6 de novembro de 2010

Barras circulares

Barras circulares

Oito e meia da noite. Esquina meio escura. Tranqüilidade. Um bar no meio do quarteirão. Bicicletas escoradas na calçada alta da esquina. Barras Circulares. Duas. Lado a lado descansando. Pequena moita de silhuetas conversando. Nada demais.

- Ê, doido, vamo fazê uns e ôto, mais tarde?
- Pió!
- E tu, lôko? Tá calado aí, já tem umas zora. Umbóra?
- Nã, dêxe quéto. Tô cum um isquema duma gata lá na praça.
- Ahhh, muleque. Quem é?
- Né do cetô, não. É lá do coléjo.
- Sim, doido. É jogo rápido. E ainda tu vai tê o doido pá gastá cum a gata.
- Pió. Que hora?
- Mais tarde. Tá cedo ainda.

Nada demais. Silhuetas conversando. Lingüiças sendo enchidas na esquina meio escura. O casal de Barras Circulares em repouso. O bar no meio do quarteirão. Vomitando a já entojante “fazer o ‘P’”. Muitos Derbys do Paraguai já se foram. É nove e vinte.

- Vô pegá o ferro lá no quintal. Vamo apurá a diária pra comprá umas cabeça. A fissura já bateu.
- Demora não. Senão a mãe sai e começa a imbaçá.
- Aquela véa num dorme cedo? 
- Sim, porra, tá quase na hora da gata ir pá praça, também. E eu quero fumá uma cabeça primêro, pá ficá viajano nos peitin dela.
- Peraí. É rapidão, moço.

Quase dez. Barras Circulares tabalhando. Vagarosas pedaladas. Um em uma. Dois na outra. Olhos esbugalhados. Atentos a qualquer falta de respeito. “O povo já deve tá saíno da facudade, maluco”. Calor crescente. Suor escorrendo pelos braços. Molhando as mãos. Encharcando as luvas do guidão. Casal vindo pela rua. Abraçados. Tranquilidade. Situação estudada facilmente. Barras Circulares parando.

- Bóra, caralho. Cartêra e celulá. Ligêro, ligêro!
- Calma, jogadô.
- Que porra de jogadô, vagabundo. Passa as parada ligêro, merda.
- Pega da minina também, doido.
- Calma, calma. Agente vai dá de boa.
- Pois umbóra, caralho.
- Tá oiano o quê, muié?
- Passa logo esse otário, rapá.
- Calma, amigo. Tá tudo aí.
- Passa fogo nor dois.
- Vamo, vamo vazá.
-Num óia pra mim não, féla da puta.

Barras Circulares trabalhando. À todo vapor. Mãos tremulas. Adrenalina em danação. Casal respirando fundo. Mulher chorando. Tremendo. Namorado puxando um 38 do cóis da calça. O alcance ainda é bom. Barras Circulares trabalhando. Celulares e carteiras com o passageiro da garupa. Eco de um pipoco ao longe. Choque instantâneo nas costas. Um choque fino e penetrante. Mão levada às costas. dedo médio encontrando um pequeno buraco úmido. Barra Circular desequilibrando. Os dois caindo. O terceiro sumindo. sem olhar para traz. A  boca do  piloto de fuga se espalha no asfalto. Sangue, areia e um dente solto na boca. Tenta se levantar. Em vão. O cano do 38 já está em sua testa. Recebe um tapa no rosto. De mão aberta.

- Qué robá pulícia, caralho? Vô te dá um tiro na cara, nojento.
- Não cara, num atira, não.
- Bota a cara no chão, porra.

Respirando areia. O rosto suado no asfalto cheio de areia. Olhando o passageiro da garupa deitado. Um vermelhão nas costas. Empapando a camisa branca. Se mexendo lentamente. Procurado sentido naquilo tudo. Procurou o outro. Nada. Um carro para quase em cima. Pineu rente ao rosto. sentindo o cheiro do pineu queimado. A quentura do motor rosnando. Vários coturnos estralando no asfalto. Os braços sendo puxados pra traz. Algemas frias apertando os pulsos. Carregado de qualquer jeito. Rebolado no camburão. Sentindo o calor e o cheiro de sangue do passageiro da garupa. Silhuetas fardadas fechando a porta. Escuridão. O passageiro da garupa não se move, mais. só cheiro de sangue e silêncio abafado. Chora.

Barra Circular trabalhando ao máximo. Os para-lamas tremem cortando a quietude da madrugada. Ele já olha pra traz sem parar. Coração tamborila como maracatú frenético. Passa pelo bar do meio do quarteirão. Conhecidos bêbados aporrinhando o proprietário. A velha saideira. Passa direto. Olha o calçada alta. Diminui a velocidade. Em frente a sua casa. Imagina a mãe dormindo. Embrulhada no  fino lençol. aperta a pedalada. Passa direto. O suor lhe arde os olhos. Lembra da gata do colégio. Visualiza ela esperando no banco de cimento da praça. Tenta imaginar o  leve cheiro de sabonete nos pequenos peitos dela. "Era pra mim tá de boa chupanno os peitin", pensa. Pensa no pipoco lá atraz. No que está acontecendo. Pensa em vários absurdos enquanto some nas vielas do turvo.

Camburão sendo aberto. silhuetas fardadas. Carregado de qualquer jeito. Várias pernas zanzando. Luminosidade forte. Jogado de qualquer jeito. Passageiro da garupa não é tirado do camburão. Deitado no chão. Escrivão com cara de nojo. Pessoas passando. Ignorando. PMs aglomerados. Uma mulher brojando no balcão. Chorando. Um reporter noturno. Em busca dos fatos para o café da manhã. Se aproxima. Microfone roçando a boca inchada. Empueirada. Ensanguentada.  Luz forte esquentando sua pele suada. Cinegrafista sugando a agonia.  Porta entreaberta no corredor. Delegado cochilando na cadeira empenada. Sonhando com reporterzinha que se enrroscou no cano curto de sua arma.   

      

11 comentários:

  1. Sempre gostei de casos de polícia, bicho. "Sangue e porrada na madrugada!", né não, Lobão? Saudades de quando os programas policias tinham um certo romantismo, um quê de literatura, tipo o Marcos Hummel na Manchete (revi agorinha no Youtube) chamando uma das reportagens do Na Rota do Crime: "Coração ferido: o dramático reencontro da mãe com o filho de quatorze anos. Ele foi preso com um revólver calibre 38 no meio da selva da madrugada."

    Du caralho o texto.

    E esse "delega" aí, conheçou de outras ocorrências. rs

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  2. "O sistema é foda, parceiro..."

    Perdeu! Perdeu, playboy!

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  3. Camarada, essa lapada tá melhor a cada dia!!! Esse conto aí das "Barras Circulares", é um retrato atualizado da condição humana. Pegou na veia velho.

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  4. Um dia filmaremos isso, Fabríti. Me aguarde aí em João Pessoa. Tocarei fogo nela.

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  5. Mais que uma estória, é a vida como ela é... bravo, meu parceiro, bravíssimo!!!!

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  6. Muito bom Gonzo! Como disse o Fabrício: "esse sim é um roteiro!", enquanto me deliciava com o texto, minha mente trabalhava nas imagens! Seria um "baita" filme!

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  7. Cru, nervoso, incomodante. Faz jus ao titulo do blog. Patrick.

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  8. O autor me parece ter bebido da fonte dos bons e velhos roteiros de Frank Miller. É, essa é a grande vantagem de quem ler os hq's. Sagacidade e sangue frio pra contar os piores momentos da humanidade com maestria. Algo tambem me lembrou Rubem Fonseca, talvez este autor já tenha tido suas experiências tambem.
    Carlos Leen

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