segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Carnaval

Carnaval



Sou de Imperatriz. Nascido d'um condado paraense. Marabá que o diga. Eu, o único da família. Nascente duma terra desinibida. Respiro a mais quente baforada que essa Imperoza deixa exalada. Do cais fedorento que ofende a ressaca ao bar em cimento sem reboco e calçada. Bolo em rebolo ao longo da Benedito em velocidade absurda que nem acredito. Desembarco em rebolo na Praça União à prestar em consolo uma comunhão.
 Com os velhos vou ter um etílico sarau de sambão em marchinha pro meu carnaval. Respiro o compasso da XV de novembro que corta o vento em saudoso contra-tempo. Beira-rio não me ver com esse axé pra TV.
 Meu samba é marchado e sem ruptura com o povo fantasiado na Praça da Cultura. Meu som tem um cheiro de amor trabalhado. Sem PMs boleiros de batuque estereotipado. Minha roda tem tucuns,  missangas dos afros. Sem douradas correntes em pescoços ornados. É da Mané Garrincha que em comoção meu peito se incha. Marchando a cidade velha em meu bloco soprado em caravela. Moro nessa Imperoza com o pé descalço no  chão. Sem um fusca, muito menos um violão. Mas, o que me valha é ser bem Flamengo e ter uma nêga chamada Natália.  

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Tendências




Temos, aqui, na passarela do Mustang Drink's nosso querido modelo Alain Delox nos mostrando a nova tendência desse verão provinciano. Uma mini-bermuda transadíssima com o forros dos bolsos a mostra. Isso é moda. Antigamente era sinônimo de mendiguísse e liseira. Vai entender. Moda é moda. Ela encabresta a estética dos bonequinhos.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Os meninos te esperam

  • Os meninos te esperam


Ela subiu rápido as escadas de mármore surrado. Tinha pressa. As crianças estavam de férias. Não gostara da idéia de deixá-las sozinhas em casa. Percorreu o longo corredor. Estivera naquele hotel, antes. Um serviço não muito recente. Estranhou ser chamada ali novamente.

Divagou os passos nervosos. Lembrou do cheiro forte de bom ar no corredor. Parecia brotar das paredes. Do forro. Do chão. Lembrou que não lhe agradara, da última vez. Não havia se acostumado com aquela sensação. Era um misterioso misto de pavor gélido com um bem-estar desenfreado. Puxou um papelzinho da bolsa. Olhou um número rabiscado. Correu com os olhos para os números das portas. Bateu com o ombro em um extintor preso na parede. Olhou pra traz. Ninguém. Continuou até encontrar na porta o número do papelzinho. Bateu. A porta se abriu. Só encostada. Deu dois passos tímidos pra dentro.


O bom ar penetrou em suas narinas de forma mais agressiva. Não havia ninguém no monótono quarto. O chuveiro estava aberto. Alguém tomava banho. Ela se sentou na beirada da cama. Olhou em volta na tentativa de encontrar as roupas do interessado. Queria saber para qual classe prestaria seus serviços. Não encontrou uma única peça de roupa. Estranhou.

Do banheiro ecoou um assobio alto. Um assovio que lhe penetrou na medula como um filete de gelo, fazendo-a contrair o esfíncter de pavor. Ela conhecia aquela canção assoviada. Havia quinze anos que ela ouvia todos os dias, aquela melodia "chata" e corriqueira. As quatro paredes do quarto pareceram lhe esmagar o coração quando o interessado saiu do banho enrrolado na toalha. Ela ficou paralisada, pálida. Lhe faltou o sustento das pernas.

Ah, já chegou? Tive que tomar outro banho de tanta ansiedade. Me falaram tão bem de ti, disse ele tranquilamente desenrolado a toalha e acendendo um cigarro. Sentou-se na cama puxando, com jeito, seu braço amolecido. Senta. Vai ficar aí que nem estátua? Não foi assim que me falaram que tu era, não. Vem cá, puxou-a com um pouco de força sem ser rude. Ela desabou na cama como um pesado boneco desengonçado. Olhou nos olhos dele. Não eram dele aqueles olhos de brilho fosco.

Me falaram que tu faz coisas que até o diabo duvida. Fiquei louco. Sabe como é, né? A esposa nunca faz tudo o que a gente quer. "Nããã, tá louco? Isso é nojento..." ou "Nããã, aí dói demais... e bla bla bla", é foda. Daí então, eu pensei em separar uma grana boa pra adquirir um serviço completo. Tipo: Barba, cabelo e bigode, brincou tirando a calça que estava em baixo da cama e puxando a carteira. Retirou um montante em dinheiro e pôs numa mesinha ao lado.

Vamo logo. Tira a roupa e fica mais solta, sussurrou em seu pescoço, desabotoando sua blusa. Pára com isso, reclamou ela começando a chorar baixinho. Não faz isso... Calaboca, safada. Tu é paga pra gemer, não chorar, rosnou ele puxando os longos cabelos dela e enterrando seu rosto no travesseiro. Suspendeu sua saia apalpando suas nádegas com apetite voraz. Desse fio dental ainda não tinha visto. Gostei, disse entre suspiros frenéticos enquanto puxava de lado o fio perfumado e enfiava a cara no meio de sua voluptuosa fresta espasmódica, esfregando como um porco numa bacia de lavagem farta. Introduziu dois dedos em seu róseo orifício relutante. Girava-os como parafuso a fim de relaxar os músculos contraídos enquanto apertava sua cabeça contra o travesseiro, abafando seu choro que o excitava cada vez mais.

Ainda tá chorando? Ora, me falaram que tu pede mais, quando metem aqui, balbuciou levantando-a e beijando seu rosto borrado pela maquiagem diluída em lágrimas. Meu Deus, olha pra ti. Parece uma velha frígida. Eu já vim pra cá fugindo disso. Vem cá, disse tirando sua roupa, quero um tratamento à altura do meu pagamento. A pôs em pé contra a vidraça da janela e empurrou delicadamente em seu botão já amaciado forçosamente. Ela não ousou falar uma palavra. Apenas olhava, entre mechas de cabelo, o lento movimento da cidade, lá em baixo, embaçado por lágrimas em tonalidade escurecida pelo lápis de seus olhos que escorriam pelo vidro. Apenas assistia a normalidade das pessoas trafegando lá em baixo, tentando ignorar aquela fome assustadora que a invadia por traz.

Nunca tive um privilégio desses, lá em casa, balbuciou de forma dócil em seu ouvido, apertando seu fino pescoço. Realmente é uma delícia colocar aqui. Bem que uns amigos meus me falaram. Aposto que todos eles já entraram aqui, não? É sempre assim. Fui o último a saber de ti, não é, puta safada.


Ele retirou rapidamente de seu orifício dilatado, puxou-a para baixo com força pelos cabelos e colocou em seus lábios vermelhos e cerrados. Despejou tudo o que tinha em seu rosto aos trapos. Foi pro banheiro. Banhou rápido e se vestiu. Pegou o dinheiro e espalhou em sua face melada. Toma o pagamento. Te veste e vai pra casa. Os meninos te esperam. Vou tomar uma cerveja alí enquanto chega a hora da janta, disse calmamente deixando-a jogada no chão.

Ela catou cada cédula pregada em seu rosto e jogou no cesto de lixo. Lavou o rosto. Engasgava-se com soluços, lágrimas e o maldito cheiro de bom ar. Desceu as escadas e pegou um taxi pra casa.

As crianças jogavam vídeo game na sala. Ela passou direto e subiu pro quarto. Tomou um banho demorado, pois não parava de chorar. Nunca se sentira daquele jeito. Era demasiado estranha aquela sensação. Desceu para fazer o jantar. Conteve-se na frente dos filhos. Pôs os pratos na mesa e chamou-os. Ouviu o carro chegando na garagem. O papai, chegou, disse um dos garotos. Ele entrou jogando a pasta no sofá. Chegou à cozinha ossoviado a velha melodia enfadonha e corriqueira. Amor tô morrendo de fome, disse, esfregando a barriga,.






























































quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Um pouco de gosto posto

Um pouco de gosto posto


Vem Noel em prosa, poesia rosa, onde sempre oscila, de cartola, na aurora da vila. No chiado d'um radio tão arcaico, Adoniran vem pintar samba em um quadro barbosáico. Vinícios e nove amores imortais, ganhos por nove poetadas nada morais. Num novo esquema não há ninguém como Jorge em um samba batido em ben-ben. Não há João que fale, proseando um sofrer, como aquele lá do vale.  Chico boarquiando a justa forma da ciranda que embala os encantos de Hiolanda.
Não há Elis que me alucina qual pimenta ardida em Regina. Gilberto, o Gil, mastigando chiclete, comendo banana, batucando com jazz a peneira do tio samba. Eis Caetano de afino penoso cortando um trio em cortejo veloso. Bethânia, de espantosa magia, deixando de ser só mais uma Maria. Gal com o veludo de sua boca aqui posta no rijo louco de minha gélida costa.
Mas, loucos são os não amantes da cabeça de Lúcifer na bandeja dos Mutantes. Um clube cujo a fonte me anima, transportando-me em azul para um ponto na esquina. Minha Nunes tão clara, chacoalhando a canela com destreza bem rara. "Amor, meu grande amor", na hora marcada me grita com honor Ângela Ro Ro. Um Maia, que não é do Eça, e sim marginal, provocando um tim-boom do leme ao pontal. O pluft, pluft, pluft de mira certeira do ferro de Moraes na boneca do Moreira.

...e ainda é bem pouco esse pouco gosto, aqui, posto.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Mais um grão de arroz na estrada


Mais um grão de arroz na estrada




“Muitas vezes o crime compensa sim!” 
Ricardo Magno, meu vizinho.

Certas coisas meio que boas ou nada convencionas só me aconteciam quando estava sofrendo uma ressaca esmagadora. Esse fatídico fato me assola desde a minha casa dos vinte. Sempre que eu me encontrava à beira de um tentador suicídio, sentado numa cadeira de plástico em baixo do chuveiro, deteriorando em desidratação, minha mãe costumava preparar apetitosos assados no almoço. Pratos que eu adorava saborear em meu corriqueiro estado “anormal”. 
Ela parecia adivinhar, para o afloramento de meu desgosto e revolta. Outro caso que sempre me vinha à tona em relação a isso foi o dia do meu casamento. Bebi tanto, de variadas bebidas na festa, que acordei no hospital. Dois dias de lua-de-mel internado, abraçado numa bolsa de soro. “Por que tu sempre estraga as coisas?”, esbravejava, minha falecida garota.  O ocorrido tornou-se motivo de piada em posteriores “debates” de mesa de bar, entre os meus.


Sempre me vinha à memória esses dois casos quando eu estava em tal estado. Até que certo dia, numa manhã quente de segunda feira, um telefonema estranho me fez esquecê-los quase que por completo. Estava eu elaborando uma prova para lançar, à tarde, aos meus alunos. O telefone tocou para desagrado de minha cabeça latejante.


Jairo?
“Oi”
E aí, Lorde, há quanto tempo.
“Quem tá falando?”
O Luiz, porra!”
“Que Luiz?”
O Diniz.”
“Diniz...?”
“É, Caralho. O Luiz Diniz.”
“Ah! O mulhé?”
É, filho de puta, é ele, mermo.”
“E aí, bicho. Tá sumido. Como é que tá?”
“Cara, aconteceu uma coisa, aqui, e eu me lembrei de ti.”
“Diga lá, companheiro.”
“Tu tá ocupado, agora?”
“Rapaz, eu tô mexendo com umas prova, aqui. O que era?”
“Cara, tem um chegado meu, aqui, que tá vendendo a coleção todinha em vinil daquela banda que tu gosta.”
“Qual?”
“Aquela que o Lemmy era o baixista.”
“Halkwind?”
“É essa mermo, cumpade.”
“Égua! Todinha?”
“É.”
“Puta merda. Quanto?”
“Cinco conto, cada um.”
“Cinco? É minha. Eu compro. Fala pra ele que eu compro.”
“Bicho, mas tu tem que vir agora, aqui em casa. O cara tá de mudança e vai embora agora de tarde. Aí ele precisa da grana agora.”
“Eh, merda, tô indo aí.”
“Espera espera. Tu sabe onde eu moro?”
“Sei não, doido.”
“Tu ainda saca onde é a casa do Geraldo?”
“O índio véi psicopata?”
“É, porra.”
“Sei, sei.”
“Pois é. Eu moro quase em frente. Num sítiozinho.”
“Tô indo aí... caralho, tu tem um sítio? Massa.”
“É, eu comprei faz uns...”
“Tô chegano aê.”
“Esper...”

Pus a primeira bermuda que vi em minha frente, calcei minhas sapatilhas de pano e vesti uma camisa de botões. Que se foda a prova. Era a coleção do Hawkwind a preço de banana. Toquei com meu fuscão pro Parque das palmeiras. Percorri a Pedro Neiva de Santana como uma cobra-cipó em capim fresco. Bob Dylan tornava aquela manhã mais suave e libertária com sua singela Desolation Row. Estava excitado pela minha futura aquisição.
Saí da pista e entrei no bairro cheio de chácarazinhas, arvores, e casas tranqüilas. Parei em frente a residência do velho Geraldo, o índio. Procurei o sítio do Luiz. Identifiquei facilmente. Acima do portão estava escrito numa placa de madeira “Sítio do Rei Degolado”. Desci do carro e toquei um sininho de ferro pendurado no portal. Um sino de ferro. Dá pra acreditar? Ele saiu rápido, quase correndo. Parecia estar agoniado. Meu Deus, havia uns doze anos que eu não o via. O tempo lhe havia perdoado um pouco, fora os cabelos que caíram e o elástico da barriga que quebrou. Ele abriu o portão rapidamente. Parecia tremer um pouco. Estava eufórico.

- O cara tá aí? – perguntei, fingindo não notar o clima estranho.
- Tá. Tá lá no quintal –, respondeu mecanicamente.

Entrei e estacionei embaixo de um cajueiro. Ele foi direto pro quintal. Segui atrás estranhando seu comportamento. Ao chegar à área tomei um espanto instantâneo. Luiz estava ao lado de um corpo estirado no cão. Havia uma auréola de sangue coalhado sob sua cabeça rodeada de moscas. Entre seus olhos um buraquinho oco e escuro dava a impressão de um terceiro olho sem o globo ocular.



- Cara, preciso da tua ajuda.
- Que porra é essa, doido?
- Foi sem querê... é sério.
- Tu matô esse cara, bicho?
- Foi sem querê, porra. Eu tava cochilano no quarto e ouvi algo, aqui na área. Aí eu vi uma silhueta se mexendo. Achei que fosse ladrão ou alguém querendo me fazê... sei lá. Peguei a pistola e arrochei lá do quarto.
- E quem é esse cara?
- Mora aqui atrás. É conhecido meu. O cara é gente boa. Caralho, tô fudido.
- Que hora foi isso?             
- Umas onze, onze e meia.
- Onze hora agora?
- Não, porra. Onze da noite de ontem.
- De ontem? Caralho?! E essa xícara na mão dele?
- Sei lá, cumpade. Talvez ele veio me pedir alguma coisa. Um pouco de óleo ou pimenta. Sei lá.

- Talvez farinha ou sabão em pó. Vizin é o diabo. Pede todo tipo de coisa a qualqué hora, bicho. É foda, mermo. E agora, doido?

- Te chamei aqui pra isso. A gente tem que dá fim no cara.
- A gente? Que porra é essa?
- A gente põe ele no porta-mala do carro e vaza pra estrada do arroz. É jogo rápido.
- Porra, tu é foda. Cadê o carro?
- Vai sê no teu. O meu tá na lanternagem.
- No meu?
- É, porra. Por isso que eu te chamei, também.
- Merda. Vamo logo.

Luiz entrou numa casinha de madeira, ao lado, que servia de despensa. Sentei numa cadeira em frente o morto. Acendi um cigarro e fique olhando-o. Estava com os olhos entreabertos. Em um dos dedos estava uma xícara de alumínio pendurada. Que merda. Olhei em volta. Notei que havia um macaquinho prego dormindo numa daquelas redinhas que os caminhoneiros costumam por como enfeite no pára-brisas do caminhão. Parecia dormir profundamente com uma das pernas pendendo para fora.  Era uma bela propriedade. Tinha um imenso quintal cheio de arvores. Poderíamos fazer um churrasco ali, futuramente.

- Truxe essa lona pra gente enrrolá ele.
- E se vierem atrás dele? Família, sei lá.
- Ele morava com uma tia, aí. Mas, parece que ela foi embora.
- A gente vai queimá ou enterrá?
- Enterrá, doido. Se a gente queimá vai chamá a atenção por causa da fumaça.
- E do cheiro de churrasco, hahaha.
- Rapá, vamo logo. Tamo perdendo tempo.
- Aquele macaco na rede é teu?
- É. Trouxe ele pra cá ano passado. Achei melhó. Ele não gostava de ficá na sede, não.
- Que sede?
- Do IBAMA.
- IBAMA?
- É, porra. Tô no IBAMA faz uns dez anos. Num sabia, não?
- Nã. Pensei que tu ainda era polícia.
- Nã. Num dava mais pra mim, não.
- Como é o nome dele?
- Do cara?
- Não. Do macaquin.
- Pirrola.
- Hahaha... pirrola. Massa.

Pegamos o cara. Eu pelos braços e o Luiz pelas pernas. Parecia chumbo e já começava a feder. Tropecei num tijolo. Quase caio em cima do indivíduo em posição de 69. Pusemos na lona. Abri o porta-malas do fusca enquanto o Luiz tentava deixá-lo em posição fetal.

- E aí?
- Porra, o cara tá duro igual pedra.
- Assim ele num vai caber no porta-mala, não.
- Caralho, e agora?
- Tu tem alguma serra, aí?
- Ah não, cumpade. Vamo serrá o cara?
- É o jeito, doido. E ainda vô tê que tirá o estepe pra tê espaço.
- Merda. Vô vê o que tenho, aqui.

Saiu correndo. Tirei o estepe e deixei encostado em um pé de jasmíns. Ele voltou rapidamente com uma faca e uma machainha enferrujada.

- Cara, num tem serra não. Só encontrei isso.
- Caralho, o cara vai pegá tétano com isso, hahaha...
- Rapá, dêxa de mulecage.
- Haha... essa foi boa. Beleza, tu corta os braço que é mais fácil e eu desconjunto as perna dele. Deve sê mais fácil que porco.
-Nã, bicho, tu é doido. Num vô fazê isso não.
- Oxente... e é eu sozin?
- Nã, doido. Num consigo não.
- Ah, meu pau. Tu é foda, mermo.
- Foi por isso que eu te chamei, também, porra. Tu num era açogueiro nas antiga?
- Teu cú, viado.
- Peraí, vô pegá um avental.
- Tem luva aí nessa porra?
- Vô vê.

Tirei a camisa, as sapatilhas e a bermuda. Lembrei de quando era moleque e ia com meu pai para fazendas abater bois na “moita”. Eu gostava de assistir os bois caindo com alavancadas na cabeça enquanto comia siriguélas. O gosto meio ácido do cortezano me veio à memória, pois foi numa dessas matanças de gado que bebi pela primeira vez. Escondido, é claro. Foi o cortezano que violou o cabaço de minha veia etílica.
Luiz apareceu com um avental e um par de luvas velhas de eletricista. Se espantou ao me ver só de cueca.

- Que porra é essa? Vai cumê o cara?
- Vai te fudê, porra. Tu acha que eu vô melá minha roupa com um homicídio?
- Foi sem querê, eu já falei.
- Vamo tirá ele da lona.
- Pra quê?
- Na terra é melhor. Absorve o sangue. Depois a gente enrola na lona.

Comecei pelos braços. Apesar de a faca estar meio cega não tive muita dificuldade com as juntas entre os braços e os ombros. Luiz não conseguia olhar o trabalho. E que trabalho. Lembrei do meu pai tagarelando todos os dias em meu ouvido que “tudo o que agente aprende serve, um dia, pra gente.”. Nunca havia ligado praquela máxima, até aquele dia.
Enquanto fazia força para cortar os ligamentos, Luiz tomava uma latinha e lavava a área manchada com o sangue seco. Passei para as pernas. Tive que cortar a bermuda do infeliz. Que constrangedor. Ao terminar de cortar sua virilha, percebi que havia sido no local errado. Estava no começo do fêmo. Eu já estava com ânsia de vômito. Talvez pelo mau cheiro que eriçava minha ressaca. Queria acabar logo com aquilo. Não procurei acertar o local exato da junta. Apenas roletei a carne com a faca e parti o osso com a machadinha. Deveria ter feito só isso desde o início. Chamei o Luiz para me ajudar a enrolar o cara na lona. Ele ajudou, evitando olhar pro vizinho desmembrado.

- Ê, Luídi, pega uma corda pra gente amarrá o pacote. Se não vai melá meu carro.
- Pió.
- Aproveita e traz uma lata. Esquartejá gente dá sede, hahaha.
- Cara, ainda ficô uma mancha lá na área. Lavei, mas, ainda ficô a porra de uma mancha.       
- Põe um toco largo em cima pra servir de mesinha pra cachaçada. Vô tomá um banho e me vestir.
- Vai ligêro, porra.
- Vai ficá me devendo e muito, por essa, tá ligado?
- Relaxa. Vô te dá uma grana boa.
- Pió, tu é do IBAMA. Deve tá istribado pra caralho. Ó essa casa, doido. Muito massa.
- É.
- Mas, por que tu comprô uma casa desse tamanho?
- Foi idéia da minha ex-esposa.
- Ex... esposa? Bicho, tu casô?
- Foi. Faz uns sete anos.
- Puta merda. Tu casado. Quem diria. Se separaram por quê?
- Num deu certo não?
- E eu conheço a mesma?
- Não. É uma advogada lá do Amarante. Dêxa pra lá. Tá melhó assim.

Antes de embalar os pedaços do sujeito, joguei a terra ensangüentada por cima dele. O sangue poderia atrair mitos importunos. Pusemos o “pacote” no porta-malas. Caiu como uma luva sem o estepe. Tomei um banho e me vesti. Luiz trancou toda a casa e entrou no carro.

- Sim. Tu num vai ligá o carro não?
- Sim. Tu vai jogá o cara numa cesta de lixo qualquer ou no bacuri?
- Como assim?
- A pá, doido.
- Eita, merda. É mermo. Foi mau.

Saiu do carro às pressas e abriu o portão. Retomei o Bob Dylan e acendi um cigarro. Estava excitado com toda aquela merda. Minhas mãos suavam como tampa de xaleira. Luiz apareceu com uma pá e uma enxada.

- Onde é que eu ponho?
- Atrás do banco, aí no piso.

Partimos rumo à desova. Percorremos a Pedro Neiva sem trocar uma palavra. Apenas ouviamos o velho lobo do folk disparando suas letras renitentes dentro de minha saboneteira móvel que servia, também, de sauna naquela hora da tarde. Descemos pela Industrial e o silêncio já me incomodava.

- Qué dizê que tu casô, bicho. Teve festa?
- Não. Foi só entre nóis. Tudo discreto.
- Se lembra da minha?
- Tu é doido. Foi álcool demais. Mêi mundo de papel.
- Principalmente meu. A Natália ficou peidada durante uma semana.
- Fiquei sabendo do acidente cum ela pela Genir.
- Que Genir?
- A do Geraldo, porra.
- Ah, sim. Ela tava lá no funeral, mermo.
- Achei que tu num ia guentá, não.
- É. Mas, parte de mim morreu, também.

Entramos na estrada do arroz. O silêncio nos tomou, novamente. Fiquei pensando no cara todo picado na frente do meu fusca. Embalado como carne podre à ser lançada numa lata de lixo. Tudo isso por ter ido pedir alguma coisa que estava faltando em sua última refeição antes de dormir. Caralho. O cara morreu com uma xícara na mão. Ainda bem que ele não tem mulher e filhos pra chorar o seu sumiço. A vida, às vezes, é um turbilhão que nos arremessa a direções ignoradas.
Tinha certeza que o Luiz pensava no mesmo, também, enquanto olhava as árvores e os urubus que iam ficando pra traz.

- E aí, Luídi. Pára aonde?
- Sei lá. Vamo mais pra frente.
- Já tamo quase no matadouro.
- Quanto mais longe melhó.
- A gasosa tá pouca.
- Será que dá pra ir mais?
- Sei lá, acho que sim.
- É, bicho, voltá num dá mais.
- Já pensô se o cara começa a se debatê lá dentro?
- Té lôco, é?
- Nã, porra. Tipo no O bons Companheiros.
- Porra, tu viaja demais, cumpade.
- Aí, a gente ia tê que descê do carro e terminá o serviço. Eu ia ser o Joe Pesci e tu o DeNiro. Porque o teu negócio é bala e o meu é faca, tá ligado?
- Bala é mais prática.
- É. Mas, faca é mais arte.
- Meu zóvo, mermo.      
- Já sei. Agente quebra naquela estradinha que vai pra pousada do Imbiral. Lá tem um monte de ponto nas intoca.
- Arrocha.

Entramos na tal estradazinha. Não demorou pra encontrarmos o local perfeito. Não havia fazenda alguma, nem casebre, nem nada. Somente o nada ornado de mata meio fechada. Sai da estrada e entrei em um espaço entre algumas árvores. Estacionei atrás de uma enorme moita. Descemos rapidamente e pegamos o “pacote”. Luiz pegou a pá e a enxada.

- Eu amoleço a terra com a enxada e tu cava. Tu num fez nada, até agora.
- Sim, meu amigo. Eu matei um cara.
- E eu desossei, e aí?
- Pois umbora, logo.

Não demorou muito para terminarmos a cova. Cada barulho que vinha da mata era motivo de gelo em nossos espinhaços. Jogamos o mesmo no fundo buraco. Enterramos com toda a pressa do mundo. Olhamos cuidadosamente ao redor para não deixar nenhuma evidência de nossa passagem por ali. Encontramos uma enorme pedra perto do carro. Pegamos com muito esforço e jogamos em cima da sepultura. Posemos as ferramentas no porta-malas.

- Vamo vazá, lôco. Tá tudo limpo.
- Borá.

Entramos no carro. Dei a partida. O fusca só engasgava. Tentei novamente. Nada. Um pavor mordaz nos tomou por completo. O carro não pegava. Empacou com um jumento birrento.

- Que porra é essa?
- Sei lá. Deve sê a gasolina ou o motô. Às vezes ele não qué pegá, mermo.
- E agora, porra?
- Agora fudeu. Entrô água.
- Merda, merda, merda.
- Agente num pode ficá aqui, não.
- Vamo empurrá o carro até a estrada. É melhó ficá lá.
- E fazê o quê, misera?
- Sei lá, lôco. Tentá aluma coisa.
- Tamo fudido, mermo. Umbora.

Empurramos o carro até a estrada. Tentamos ligar de todo jeito. Nada o fazia ligar. A tarde já estava próxima do fim e estávamos no meio do nada com um corpo todo pinicado ali próximo. A impaciência se tornara demasiadamente enlouquecedora. Um barulho de motor vinha ao longe. Apuramos a audição. Vinha um carro em nossa direção. Uma caminhonete Hilux. Suspiramos quando ela parou. Um cara baixinho de uns cinqüenta anos desceu e veio até nós. Usava um chapéu branco de cowboy, estava sem camisa e usava uma grossa corrente de ouro. Na parte de traz havia umas três garotas na base de vinte a vinte cinco. Estavam meio chapadas e faziam muito barulho. Ouviam Amado Batista a tantos decibéis.

- Tão no prego aí, moço?   
- É, rapais. Esse fusca dá trabalho.
- E eu num sei? Eu já tive uma disgraça dessa. Tão ino pra onde?
- Pra pousada de Imbiral.
- Pois fechô, intão. Nós também.
- Mas e o carro?
- Eu puxo, moço. Num esquente, não.

O baixinho desenrolou um cabo de aço da traseira de sua pik up e engatou no carro. Entramos no fusca e fomos puxados por um cowboy buchodo e um monte de safadas em alvoroço com o maldito “Amigo” Batista no meio do nada.

- Porra, bota um som aí. Essa música de corno é foda.
- O que tu qué ouví?
- O que tem aí no pênis drive?
- Rapá, tem um monte de coisa. Cartola, Suzi Quatro...
- Tem Patif Band?
- Dexêi em casa. Tem Queen The Stone.
- Nã. Já abusei. Tem Velhas virgens?
- Não... ah foda-se. Vamo curtir Amor meu grande amor, da Ângele Ro Ro.
- De boa.
- Tem cigarro aí?
- Cabô.
- Porra Luiz, tua cartêra tava cheinha.
- Ah, porra. Tu quem fumô mais. Chegá na pousada a gente compra e toma umas.
- Tô quebrado, doido.
- Eu pago o goró, relaxa.
- Falá em pagá, quero como parte do pagamento, um macaco prego. Desde moleque eu sempre quis um.
- Vô vê, cumpade.