De sonho e de sangue
Os personagens dessa tragédia são factuais,
porém, algumas situações são fictícias.
Era mais uma dessas manhãs de domingo onde o sol estava meio morno e a ressaca não castigava tanto assim. Poucos carros, sacolas de pão, baganas de cigarros acumuladas na frente do bar que dormia exausto e pequenos montes de lixo ensacados nas quinas das calçadas. Não tão longe da parafernalha cangacenta do nosso velho Filipão, a agradável temperatura dourava o imponente bucho nu de Sitônio Silva "Seixas" que se encontrava na porta repousando o pesado corpo repleto de morrinha pós-álcool no pano verde de sua "cadeira preguiçosa". No chão, ao lado, havia uma jarra de vidro cheia de suco de uva com cubos de gelo - Esse era um procedimento pradrão tomado nas desidratadas manhãs dos finais de semana. Do meio da rua se podia ver dentro da pequena sala de estar uma televisãosinha cor-de-rosa, daquelas da xuxa, conectada à um aparelho de DVD. Dela saia a trovejante voz do Zé Ramalho. Canção agalopada. O sol continuava perfeito e corria um vento manso causando-lhe uma sensação de frescor já que estava sem cueca, vestindo apenas um short fino e não mais preto do vasco da gama. Espantava, pacientemente, uma mosca teimosa que tendia a pousar na boca da jarra. Olhou para o rumo da Praça União. Mais precisamente para o boteco do "pêxe pôde". Reconheceu uma figura familiar que de lá vinha. Era uma criatura cambaleante, magra, de cara fina, olhos esbugalhados e topete bagunçado. Parecia mais um enorme facão "língua-de-péba" ambulânte que se envergava pra lá e pra cá. Aproximou-se.
- E aí, Sitõe, beleza, cara? - Perguntou, meio que travando a voz, o bêbado.
- Fala, el Tabôsa - Saldou-o, bricando com um sotaque espânico.
- Tu viu o Cabecinha por aí?
- Não. Acabei de me prostá aqui na calçada pra pegá um sol bem!
- Porra, eu liguei pra ele faz é hora. Falei que tava lá no pêxe pôde, esperano ele. - Disse rápido com um ar sério.
- Ôxe, liga pra ele de novo. - Sugeriu o Sitônio enchendo o copo com suco.
- A bateria des... carregou. Tu... tem cré... crédito aí, cara? - Gaguejou sentando-se no meio fio.
- Tenho. Qual é o número?
- Êita, porra, num tenho de cabeça, não. E o ce... celulá descarregou... e agora? - lamentou o Tabosa com cara de cachorro que caiu da mudança.
- Agora ficô ruim de mexê, mérte! E o que era que tu queria com ele?
- Só... só tomá uma com ele.
- Rapá, que diacho de cachaça é essa? Tu tá derde ontem bebeno. E esses carrapicho, aí na tua calça? tu andô aonde diabo?
- Sei lá, cara. Acho que foi quando eu tava com o Alain lá na bêra-Rio.
- E cadê ele?
- Me dexô no pêxe pôde e sumiu no mundo - disse abanando os braços e olhando pra jarra - Ê, Sitõe, eu... eu posso tomá um pouco desse vinho, cara?
- Num é vinho, não. É o meu nécta salvador - levantou o copo para o alto, depois passou pro Tabosa - , é a mais bela glicose.
- Égua, cara, tô precisando, mermo desse nécta, hahaha... - sorriu, abobalhadamente mudando, logo, a feição.
Ao vê-lo sorrir, Sitônio lembro-se do que haviam falado, certa vez, à respeito desse sorriso que "parece um pangaré magro". - E o cabecinha tá aonde?
- Num sei, não!
- Sim, e tu só bebe se fô cum ele, é?
- É porque eu tô liso e ele disse que tem um trocado, aí. - passou a mão no topete pontudo e concluiu com lamento - Bicho, eu gastei tudo, Sitõe.
- É, mérte, acontece. Eu queria tomá uma, também, mas tô falido. Ontem rolô um aniversário, aí no Claudete. Era dum metalêro. Pense num magote de metalêro junto? Tudo cabeludo, lôco, lôco, lôco, como diz o Josééélio.
- E tu tava lá?
- Marrapá. Nunca tinha visto um negóço daquele alí no mundo, não. Tinha umas música lá, que o cara cantano parecia um porco seno capado. - Disse levantando-se lentamente e se espriguiçando. - Pega uma cadêra e senta, vô dá um mijão. - atravessou o estreito corredorzinho que dava para a cozinha. Coçou o saco por um bom tempo. Sorriu ao lembrar da eterna pira piscológica do Lambal. Ao retornar, se deparou com o cabecinha sentado na garupa de uma bicicleta meio acabada.
- Ó, o cabecinha da minha pinta!
- Fala, Sitroën.
- Fais hora que o Tabosa te espera pra iniciar os trabalhos.
- Iniciar? Essa miséra tá na rua derde onte, bêbo cego.
- Ê, Cabecinha, eu tô de boa, cara. E aí, vamo lá?
- Lá aonde? Eu tô liso macaco.
- Ê, Cabecinha, tu disse que tinha grana.
- "Tinha". Falô certo. Minha Vó levô tudo pra fazê a fêra.
- E agora, doido?
- Agora ficô ruim de mexê. - respondeu, Sitônio pondo a cadeira preguiçosa pra dentro. O sol já começava a arder. - Vamo pra dentro... o Tabosa tá afim, mermo de bebê. Espera aí que ainda tem um pôco de tandrílio, aqui. - Sumiu no corredorzinho cantarolando Love me tender, do rei.
- Que diabo é, Cabecinha? - perguntou, Tabosa notando que ele estava olhando-o com desaprovação devido ao seu estado ébrio e amarrotado - E tu, Cabecinha... quem é tu pra falá aguma coisa?
- Oxente, menino, o que é que eu tô falano?
- Eu sei, Cabecinha, só de olhá esse olharrr, aí, de s... s... de sensura - Reclamou balançando o topete. - Logo tu que bebe pá caralho.
- Sim, lôco véi, eu tô calado, aqui. Tá fincano é doido.
- É, né? Anhã, tá bom! Pensa que eu num sei que tu ficô só de cueca, um dia, ali no Claudeci?
- Sim, tava chuveno. Pió foi o Jairo que ficô foi pelado, correno no mêi da rua. Ele tava cum a cueca no ombro.
- Alguém viu? - perguntou se dobrando na cadeira.
- Ôxe, a galera toda que tava lá.
- Hahaha... Caralho! Ê, Sitõe, tá sabeno dessa do Jairo?
- O quê? - perguntou trazendo uma garrafa de Slova abaixo da metade.
- Que o Jairo andou pelado na rua?
- É um insano. Eu tava lá. Até banhei na chuva.
- Bicho, ele ficô peladão, mermo?
- É um doênte. Só fez jogar a rôpa no ombro da Natália e saiu pulano igual macaco, na chuva. É um doênte.
- E a Natália num falô nada?
- Falá o quê? Ela faz é gostá dessas depravação dele.
- Sim, cadê os copo? É pra bebê no gargalho, mermo? - resmungou o Cabecinha fitando a garrafa posta numa mesinha no centro.
- Muita calma, nessa hora. - disse, Sitônio trocando o CD. Foi buscar os copos.
- E onde era que tu tava? - perguntou o Cabecinha encostando a bicicleta no pé da porta.
- No Pêxe Pôde te esperano.
- Não, animal. Antes de ir pra lá.
- Acho que apaguei no carro do Alain.
- E cadê aquele lôco?
- Sei não, cara. Acho que ele foi dormir.
- Pega, seu animal - Passou um copo de extrato de tomate limpo pro Tabosa. - Qué também, cabeça da minha pinta?
- Claro. E bota um pôco desse suco, aí.
- Suco? Ai ai ai - Sentou -se apontando a direção da jarra - Tá aí, ó.
- Ê, Sitroën, tu tem que me serví, porra, eu sô visita.
- O cú tu num qué dá BEM, não?
- Bicho, eu tô brocado, num tem algum tira-gosto aí não?
- Ahhh, oí Tabosa, ele qué pãozin e leitin. Tu num qué um gomoso bom, não?
- Vai te lascá, disgraça.
- Ê, Sitõe Silva, só tem isso aí de vodka? Isso aí num dá pra nada não, cara. - alarmou o Tabosa, preocupado com a pouquísima bebida.
- É o que nós temos, mérte.
- Ê, caralho, tu tem quanto aí, Cabecinha?
- Setenta e cinco centávo!
- E tu Sitõe?
- Nada.
- Rapá, Sitõe, vê aí, porra.
- Vejamos... Vô averiguá nos cofres da família Corleone. - Sumiu, novamente, no corredorsinho.
- Ó o Helto alí. - Tabosa gritou pele janela - Ê, Helto, vem aqui, cara.
Surpreendido pelo grito, Elton se virou e aprumou a visão pra ver quem era. Reconheceu o Tabosa e atravessou a rua balançando a cabeça negativamente.
- Bicho, Tabosa, tu já tá bêbo, de novo? - Chegou na porta e viu o Cabecinha encarcando vodka goela a baixo. - Ó o diabo. Cabecinha? Que diabo vocês... Meu Deus.
- Tá ino pra onde, doido? - pergunta Cabecinha.
- Lá pro The pêxe pôde club band, tomá umas de abacaxi e curtí um som.
- Não lôco, vamo tomá aqui na casa do Sitõe Silva.
- E o que isso que vocês tão tomano?
- Vodka com suco de uva.
- Sim, minino, já tá é acabano!
- Agente tá fazeno uma vaquinha pra comprá ôto líto.
- E já tem quanto?
- Eu consegui encontrá dois conto no bolso da bermuda do Cássio. - disse estendendo a nota pro Cabecinha.
- Quem diabo é Cássio?
-É um cidadão que divide, aqui, comigo a onda.
- Tu tem quanto aí, Helto? - pergunta Tabosa.
- Rapaiz, eu tô fraco.
- Que nada, Helto. Tu acabô de dizê que ia bebê no pêxe pôde.
- Sim, minino, era cachaça num era cerveja, não.
- E quanto é que tu tem disgraça.
- Hohohohoho.... - Sitônio gargalha em estridências ante a impaciência de Cabecinha.
- Só tenho 3 conto, porra. - Helton puxa do bolso uma nota de dois e duas moedas de cinquenta centavos. - Pega besta-fera. E o Tabosa num deu nada?
- Tô liso, cara.
- Rapá, Tabosa, tu é um lixo, mermo.
- Sim, meu amigo, vamo fazê a contabilidade, aqui. - Sitônio junta toda a merréca - Temos exatamente cinco reais e setenta e cinco centavos.
- E qanto é o líto de slova?
- Uns sete reais, no maximo.
- Que diacho de brêfo é esse?
- No mundo num tem não, mérte.
- Me dá essa porra, aí. Vô lá no pêxe pôde comprá. O resto eu dêxo no "F" cum o Lorival. - Helton pega o dinheiro e sai em passadas largas.
- Ê, sitõe, esse cara que mora aqui contigo é do Amarante, também?
- Lógico, meu amigo. Tem que ser.
- Rapaiz, eu acho que em todo condomínio de Imperatriz tem esses amarantino pau-de-bosta. - brinca Cabecinha. - Na UEMA tá é chêi.
- É mermo. - Concorda Tabosa.
- A colônia amarantina dominará o munnndo. - serra os punhos, bate no peito e grita rasgado - A minha identidAAAde.
- Bicho, cara, lá num tem vodka não. - lamentou Helton na porta. - E agora?
- Agora ficô ruim de mexê. Definitivamente.
Na janela aparece a cara seca do Josélio Jhon Joe.
- Faaaala, bando de va-ga-bun-dos?
- Ó! Joséééélio Barroso.
- Barroso é teu pai, fie de rapariga.
- Hohohohoh - a gargalhada de Sitônio fez todos rirem.
- Que diacho é que vocês tão inventano aí, Rapaiz?
- Rapá, agente tá tentano juntá uma grana pra comprá um líto. Tem alguma ajuda aí?
Jhon joe começa a assoviar alto, enfiou a mão no bolso e jogou pelo lado de fora um papel embolado. Depois sumiu sem mais nem menos.
- Que diabo é? É pedra? - pergunta Sitônio, rindo.
- É dois conto, doido. - gritou Cabecinha como se tivesse ganhado na loteria.
- O Josélio deu dois conto? Ohh, meu Deus! quem trabalha o povo qué de novo, meu povo!
- Vai lá Cabecinha comprá a parada. - mandou Helton.
- Nã! Marrapá, quem vai é o Tabosa, ôxente. Ele num deu nada.
- E tu deu muita coisa, num foi Cabecinha? Só umar mueda véa.
- É tu mermo, Tabosa. Vai logo, disgraça.
- Porra esses cara são foda pra caralho. - resmungou pegando o apurado e socando no bolso da calça. - Sim... e onde é que eu compro?
- Onde é sitroën? - pergunta o Cabecinha trocando o CD.
- Rapaiz... naquele supermercado, alí... quase em frente o sacolão central.
- Ah, sei. Lá na Simplício, né?
- É, miséra. Vaza logo. Vai na bike do Cabecinha.
- Ê, cara, tem frêi, tem?
- Satanais, bicho! Tem, porra.
Tabosa subiu na bicicleta embaraçosamente. Lembrou à todos um cavaleiro atapalhado que tenta montar um cavalo "brabo". Todos foram pra porta olhar. Bombiou um pouco na arrancada. Conseguiu o equilíbrio necessário. Dobrou a esquina.
- Depois que apruma num cai mar não, maluco. - Assegurou o Helton.
- Porra, Cabecinha, por quê tu tirou o Zé, a lenda? - perguntou, Sitônio com desaprovação.
- O que mais tem aí?
- Tem coisas lindas.
- "Coisas lindas"! Ai ai ai, parece que é emo.
- Rapaiz, os emo vão dominá o mundo, mermo? - ironizou de forma triste, Sitônio.
- Bicho, tá em todo lugá, esses troço ruim. Daqui uns dia tão no Amarante.
- Daqui uns dia? Já tão, e é beeem, moço!
- É mermo, Sitõe? Rapá, que diabo é isso?
- O pau que rola lá e emo e a peeedra, mérte.
- Pió, bicho. A pedra tá acabano cum tudo igual potaça.
- Rapaiz, qual é o propósito dos emo, mermo? Assim... O que diabo eles são? O que é a identidaaade emo?
- Dá o cú, mermo. - Disse Cabecinha olhando o estojo de CD's.
- Bicho, os emo é a maior nojêra do mundo. Eles não tem nenhuma ideologia, só istíca o cabelo cum sebo de bode, só pode, cola num lado da cara, põe umas calça colada, colorida e ouvi NXZero e Lade GaGa. Eles fica só de grupín nos canto chorano as dores de suas fraquezas. - explica, Helton.
- Rapá, e comé que guênta andá cum aquelas calça espoca-ovo? Moço, alí se dé um peido o fundo da calça saca fora.
- hahaha - Cabecinha se acaba em gaitadas.
- E eles fode, será?
- Fode porra nenhuma. Alguns fala que num tem sexo, não. São como anjinhos delicadinhos.
- Ah, meu pau no leite de côco. - resmunga, Sitônio.
- E outra. Ainda por cima, esses nojento pegaram o visual de um monte de movimento e tendência do passado. Robaram dos punk, dos metal, dos mode e o caralho. Misturam cum os nerd e os dragqueen. Aí, deu essa porra, aí.
- Tem uns que robaram, também, o corte de cabelo do Chitãozin e Chororó dos anos 80.
- É mermo, bicho. É igualzín àquela nojêra.
- Bicho o Tabosa foi comprá esse líto lá no Amarante, mermo? O que o Sitõe trôxe só deu uma dose véa pra cada.
- Porra, Cabecinha, tu tirô o som de novo, miséra? - reclamou, impaciênte, Sitônio
- Peraí, porra. Xô vê o que é isso aqui.
Era Fagner. Sangue e pudins.
- Pode dexá aí, mérte. Meu Deus. Essa música é uma rajada na alma. É uma lapada no meu pâncreas. - Disse com o rosto e os braços estendidos pro alto. - Essa música é do Zé Ramalho, só que essa versão é tu-do, no universo. Na galáxia. Zé Ramalho é um centauro mitológico.
- Prefiro o Alceu. - Coloca, Helton.
- Eu também. - Reforça, Cabecinha.
- É não, mérte. Num pode.
- Não... Tipo assim - tenta suavisar Helton, - Os dois são equiparados. O Zé é melhor pra fumá maconha e o Alceu é melhó pra bebê e indoidá.
- É. Sendo assim, pode sê.
- Ê, Sitõe, tem belchior nessa miséra, não?
- Acho que é esse aí que tá na tua mão.
- Hehehe... Citãozin e Chororó! Ê, disgraça, esse bicho é muleque. - Lembrou Helton da comparação feita por Sitônio.
Cabecinha pôs o CD. Começou com a palo seco. Houve um breve silêncio por força que tal música lhes causava. Tabosa apareceu na porta, suado. Ofegante. Trazia a garrafa de vodka. Helton notou uma grande raladura em seu ante braço.
- Que diabo foi isso, Tabosa?
- Tu foi comprá esse líto aonde, satanais? - perguntou o Cabecinha.
- Tu foi pisano no zovo? - Sitônio perguntou.
- Vão se lascá,vocês tudim. Eu sofri um acidênte, cara.
- Como foi?
- Eu tava ino na rua quando eu vi o meu pai no carro bem na esquina da Benedito. Aí, eu me espantei e apertei o frêi da frente. O pneo de traz levantou e eu me lasquei no chão.
Os outros se olharam, por um momento, e cairam na gargalhada. Tabosa, na porta, ficou com cara de jumento olhando. As gargalhadas pararam. Ele olhou pra raladura e disse:
- Mais eu num dêxei o líto caí. - passou a dar gargalhadas sozinho.
- Me dá esse líto aqui, cara de pangaré. - disse Helton tomando a garrafa da mão do Tabosa e pondo na mesinha.
- Ê, Sitõe, faz o suco, lá.
- Já tem feito. Tá lá na geladeira. Péga lá.
- Não. Dêxa que eu pego. Vô dá um mijão, mermo.
- Ao passar pela salinha, Tabosa tropessa no pé do Helton e, parecendo uma palmeira, pende, lentamente, pro lado, caindo e buscando apoio na mesinha. A garrafa balançou e se estilhaçou no chão. Ficaram alí, assistindo a vodka se espalhar pela cerâmica velha ao som de a palo seco. Mais precisamente ao som do nostálgico sax atemporal e longínquo de a palo seco.