terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Palhaço

Palhaço

Um gato rajado deu uma pirueta de trezentos e sessenta graus no meio da rua, ao ouvir três estouros. Um palhaço tombou morto no meio fio com três tiros no rosto. Sua maquiagem tornou-se um vermelhão fresco. Gritaria. Eram quase quatro e meia da tarde. Um sábado. A música era alta. Vomitada do porta-zoadas de um carro que animava o churrasco no caseiro boteco de sempre. O palhaço encostara ali a insistências de seus velhos bêbados de infância.
Teve uma vida difícil pra não dizer subumana. O pai tocou para Serra Pelada na promessa de trazer uma bolsa de couro cheia de mudanças confortáveis. Nunca voltou. A mãe era "fateira" no matadouro. Nas horas vagas catava trouxas de linhos sujos das patroas para lavar. Estudou a ponto de saber ler e escrever. Sempre tinha problemas com as professoras. Achava-se melhor do que elas. Notara-se que era aspirante a mestre na arte da lábia. Tornou-se líder entre a molecada da rua. Sempre a frente em missões como roubar manga ou galinha da velha viúva do bairro. "Donde é essa galinha, minino?", sempre perguntava a mãe, torcendo a roupa. As desculpas eram das mais originais.
Largou a escola e foi vender quebra-queixo. Precisava de umas "becas" e um boot. Na lábia, perdeu a virgindade em brincadeiras infantes. Fez-se homem por si só com o cabresto quebrado. Viu um circo visitante. Na lábia, conseguiu um afazer naquele mundo novo. “Mãe! Arrumei um trampo, vô vazá”. Foi. Oito anos no trecho. Voltou como palhaço. Não tirou mais a maquiagem nem as roupas largas. Tinha perdido a identidade por escrito na extensão do trecho corrido. Só era apenas o Palhaço. Com o dinheiro acumulado, comprou um velho trenzinho da alegria. Sucesso estourado. Fez família sem ver. Só gostou quando o “cabeção" veio à luz. Bebeu que mijou nas largas calças de bolinhas vermelhas. Foi carregado num carro de mão para a recepção esbravejante da sogra.
Em tempo de eleições, alugava o velho trenzinho nas campanhas. Tornou-se cabo eleitoral. Puxava muitos votos  no boca à boca para os patrões. Era o Palhaço. Tinha a mestria da lábia.
Uma ficha lhe caiu no orifício da distração ao esbarrar em um velho ébrio que, arrotando cana em sua maquiagem, sugeriu um cargo de vereador. Gostou da proposta ao analisar a quantidade de forasteiros que sugavam suas bandas. Lançou-se candidato para orgulho da esposa e seu nariz arrebitado. Fez intriga com os velhos patrões. Fez-se um patrão por orgulho de ser servil. O trenzinho agora carregava o seu santinho. O Palhaço do povo. Seu boca a boca e pé no chão venceram muitas carreatas fogueteiras, ornadas de uísque e patricinhas com blusinhas amarradas abaixo dos peitos evidentes, escachadas em caminhonetes luxuosas.
Foram dois anos de bons planos e elaboradas propostas na câmara provincial.  Os velhos patrões, agora "companheiros" de "luta", sentiam um desconforto com o "colega" maquiado  tentando trabalhar para povo. Dois anos até chegar a época de mamar. Começavam as campanhas para os candidatos ao governo. Ele percebeu um alvoroço na câmara. Os "companheiros" pareciam varejeiras azuladas em excitação ao sentir uma manga madura espatifada em terreno fértil. Ignorava os zumbidos. Sabia que a atual governadora oferecia leite em troca de sangue. Fechou-se em sua sala. Inevitável. Era o palhaço. Podia arrecadar muitas almas.
Recebeu uma "ilustre" visita representando o governo. Ela lhe trazia um grosso "tijolinho" cuidadosamente amarrado. Olhou-o encima da mesa. O cheiro era forte e fresco. Só olhou sem sequer contar as notas de cem que componham aquele "tijolinho" grosso. Recusou, xingando o "ilustre". Soube depois que cada "companheiro" de "luta" da câmara "mamou" 250 mil pelo sangue dos seus e dos outros. "É melhor por a cabeça no travesseiro e dormir", afirmou para si indo para casa.
Os xingamentos foram dos mais grotescos por parte da esposa, ao saber de sua recusa absurda. A fina dama precisava desse  soberbo pedestal para arrebitar mais ainda seu narizinho.  Fez as malas de qualquer jeito e bateu a porta chamando-o, inconscientemente, de palhaço. Ele riu disso, no sofar. Deixou-a ir. Mais tarde soube pela matraca da sogra que a filhinha conseguiu um emprego de cabeleleira na Espanha.
No dia seguinte ele mobilizou alguns estudantes universitários com panfletos denunciando os "companheiros" que estavam se amamentando de tetas ilícitas. Espalharam por escolas, bares, feiras e praças. Por todos os dias ele gritava por todos os cantos da província. Seu trenzinho  já se tornara um trem de carga a carregar a face maquiada  da câmara provincial.
Certo dia foi deixar seu "cabeção" na casa da avó. Ao voltar para os trabalhos, parou no caseiro boteco de sempre, por insistências de seus velhos bêbados de infância.

4 comentários:

  1. O cara que catava papelão pediu
    Um pingado quente, em maus lençóis, nem voz
    Nem terno, nem tampouco ternura
    À margem de toda rua, sem identificação, sei não
    Um homem de pedra, de pó, de pé no chão
    De pé na cova, sem vocação, sem convicção...

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  2. Os "companheiros" pareciam varejeiras azuladas em excitação ao sentir uma manga madura espatifada em terreno fértil.

    Não só o velho palhaço vivenciou tal teatro. É de todo dia esse espetáculo entre nós, as vezes queremos ver. outraz vezes somos nós mesmo. Varejeiras ou mangas.

    Belíssimo texto.

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  3. Devido ao conteúdo impróprio para menores de 1,50, o comentário acima teve que ser removido pela autora...
    .

    Try again:
    O palhaço olha pra si mesmo e vê no espelho a imagem de um bêbado mal equilibrado, sem esperança e sem sombrinha, na corda bamba ao som de um samba...abençoando, a festa do divino carnaval! Pois ele sabe que o show de todo artista...TEM QUE CONTINUAR!!!

    É o ROOODO COTIDIAAANO...(my brother!)

    Au revoir, mon cher!!!;)

    P.s.:owwww! por conta daquelas "historinhas" de ninar (sobre serial killers) que vcs contaram, quase não durmo domingo... CoisinhaDeJesus!!!! (E ainda mais com uma faixa preta de luto aki na ksa da frente, ai é que eu não dormi mesmo).

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  4. Olá!
    Grata pela visita e...link.
    Simpatizei com esse personagem..espero que esse seu trenzinho não pare...
    abraço

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