quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Fonda, Hooper e o Lecoleco

Um Fonda, um Hooper e o Lecoléco
À meu amigo Dr. Oscar


BR010. Setor da Lagoa Verde. À tarde, sob um céu nublando, dois andarilhos suam na beira da pista. Um traz nas costas uma imensa mochila jeans desbotada, uma das bocas meio aberta revela parte da garrafa de Ypióca já inaugurada. O outro carrega seu "trampo" envolto em um mofado mostruário preto com finos canos desmontados.

- Caralho, brother, aquele rango que a gente filô naquele tal assentamento California pesô legal, aê.
- Aquele brow lá, da cadeira de roda foi sangue bom pra caralho, bicho. Comé o nome dele, mermo? Zé Claudio?
- Zé Luis!
- Pô, ele considerô um rango de reponsa, aê.
- Comé, mermo, o nome da parada?
- Um tal de cham... chami...
- Chambari, cumpade.
- Ééé, pode crê.
- Do caralho, mermo, me deu foi até sono, velho.
- Pió.
- Porra, aqui é mais quente que Fortaleza, doido.
- É. Mas, eu te passei a fita, maluco. Tu nunca sai do sul.
- Porra, e é porque tá nublando. Ó minha cor, velho. Tô parecendo um camarão.
- Camarãozão, aê. Vô te fumá todão. Hahaha.
- Então vamo botá um em baixo daquela mangueira, brother. Maó sombra fresca, cumpade.
- Pode crê, truta. Também tô mortão, aí.

Despejaram suas tralhas e se sentaram ao pé da arvore. Suspiraram o cansaço. Um pegou uma barrafa de água na mochila enquanto o outro bolava o da tarde.

- Aê, brow. A gente devia trampá com morango, aqui.
- Comé, rapá?
- Moran... morango, bicho. Aqui é nordeste. A galera daqui não deve ter fam... familiaridade com essas parada, não. - Disse passando a bola pro outro.
- Pod... crê, doido. O nosso artesanato só tá dando pra bancá fumo pôco e os PF.
- Porra, velho, lá vem uma viatura.
- O quê?
- apaga o bagulho e joga fora.
- On... onde?
- Os alemão, tão vindo, doido.
- Porra, maluco...

O hippie tomou o basiado rapidamente da mão do outro e rebolou atrás de uma moita. A “viatura” passou direto. Era uma ambulância em atividade de emergência.

- Caralho, bicho, tu alarmô a parada por causa da SAMU? Puta merda, doido, cadê o camarão?
- Joguei atrás dequeles arbusto, ali. Foi mau. To indo buscar.

Correu o hippie atrás do prejuízo na pressa de evitar mais desperdício de um basiado ser consumido pelo nada. Rodeou toda a moita sem encontrar nada. Pediu apoio ao outro que se apressou motivado pela fissura. Caminharam em rumos diferentes pelo mato. Começavam a ficar intrigados. O hippie parou à beira de um lameiro fétido. Viu algo se mexer atrás de uma bananeira. Tentou ver o que era. Aproximou-se e viu um porco de costas. Sentado. Estava coberto de lama.

- Bicho, tem um porco aqui – Gritou pro outro.
- Porco não, Lelé! – Soltou o porco se virando com o resto do basiado na boca.
- O quê? – perguntou o outro.
- Tem um porco, aqui, e ele ta fumando nossa parada.
- Porco não, caralho, Lecoléco.

O outro chegou confuso e espantou-se ao ver o porco queimando a última ponta do bagulho.

- Égua, cumpade, essa é da prensada de Pernanbuco, né? – disse, bolando no lameiro.
- Porra, brother, é muita onda, velho. – riu o hippie boquiaberto.
- Pio, brow. É muita loucura no cabeção, aê. Pode crê. – Afirmou o outro.
- “Nhem, nhem, nhem, bróder”. Ah, meu parafuso no leite de côco, só podia sê dois hippie chêi das gíria num sutaque caipira lá de Goiânia. – resmungou o porco saindo do lameiro.
- Não, velho, eu sou do Rio e o moleque, aqui, é de Santa Catarina.
- É tudo um bando de pau de bosta igual aqueles cumedô de piquí que usa bota e fivela maió que um pires. E o pió é que quanto maió é a fivela menó é o pau.
- O que é piquí? – pergunta o hippie.
- É um caroço igual buceta. – responde o porco.
- Como assim? – o outro.
- Fede pá daná, mais é gostoso. É uma música sábia.

Vão para debaixo da mangueira tomar um pouco da Ypióca. Os dois perceberam que o porco parecia perdido em pensamentos distantes.

- Ê, porc... é, Lecoléco. Toma aí uma cachacinha com a gente, brother.
- Não, num bebo, não.
- Tu é daqui, mermo?
- Sô daquele lamêro, lá.
- Pode crê, aí. Boto maó fé, sangue bom.
- Rapá, me diz uma coisa, aqui. Por quê que hippie, viado, e estudante de humanas tem um jeito só deles de falá? Tem é curso obrigatório pra isso? – pergunta o porco olhando o “trampo” deles.
- Como assim?
- Vocês num fala só de um jeito só? Chêi de gíria? Os viado  nem precisa falá.Também, tudo do mermo jeito. E os universitário metido a intelectual que quando cunversa parece que tão cantano um pro outro na merma intonação. Até os gesto e as expressão. Aí eles fica tetano demostrá que cunhece a obra de fulano mais do quê sicrano, que o cinema de num sei quem tem num sei qual istética representano num sei que merda, que o Chico fez uma bossa misturada cum samba pra não sei quem  diabo. Aí, no final tão tudo bêbo agino como se fosse um bando de vagabundo analfabeto que vive chapado na lápa daquele tempo. Sem falá no vocabulário que parece que tiraram duma  espéci de cartilha universal de merda para paunocusar em mesa de bar.
- Ah, velho, cada tribo tem sua identidade de linguagem. Tu nunca foi de nenhuma tribo, não?
- Nã, eu nunca fui índio.
- Ah ah ah... o porco é o maó tirão, aê.
- Já falei. Lecoléco, felá da puta.
- Foi mau, pacêro.
- Vocês tão indo pra onde?
- Bicho agente acabô de chegar de Fortaleza e vamo vê a de qual é, ta ligado?
- Fortaleza? Ouvi dizê que lá tem puta pá porra.
- Ah, velho, tem em todo lugar. Mas, lá é legal.
- E cês vieram pará aqui como?
- Um caminhoneiro de Mato Grosso tava lá e vinha pra cá. Aí ele deu carona em troca de maconha. Muito doido o figura, meu. A gente veio curtindo autos sons.
- Pió, velho. Muito doido mermo.
- Aí, cês tão indo pá Imperoza?
- Pode crê. Tu sabe a de qual é da cidade?
- Não. Mas, tem hippie, viado e universitário, aí.

Acenderam outro. Maior ainda. O porco era um dragão. Dois prensados em um curto espaço de tempo tornou o clima incomum. Um se sentou, recostando-se na mangueira. O outro se deitou no capim. O porco se apoiou em um velho pedaço de concreto. O efeito da segunda já afetava a comunicação.

- Eita, pernanbucana nojenta –, o porco.
- Quem? -, o hippie.
- ora, quem! – o porco.
- O basiado, animal. – O outro.
- Cadê? – O hippie.
- Ta com o porco. – o outro.
- Felá da puta... – o porco.
- Lecoléco, Lecoléco. Foi mau. – o outro.
- Passa aê, Lelè. – o hippie.
- Tá cum o... o Romário, aí. – o porco.
- Prfnn... vai chuvê? – o outro.
- Sei lá e tu? – o porco.
- Passa, caralho. – o hippie.
- Toma, aê, brow. – o outro.
- Me joga um colá de tucum aí, moço. – o porco
- Escolhe aê, brother. – o hippie.
- Aí, tu é um suino sangue bom. Vamo tocá o bonde. – o outro.

Se puseram a andar no acostamento.

- Aí, Lecoléco, o que tu acha da gente vender morango aqui. Será que dá grana, cumpade?
- Sei lá. Prefiro manga de fiapo.
- Manga de fiapo? Como assim?
- Dêxa pra lá, doido.
- Porra, velho, a gente tem que arranjar água. Ta acabando. Onde é que tem posto aqui perto, Lelé?
- Bim li, na frente, tem o posto avenida. De noite, se vocês passá lá, cuidado cum as puta. A maioria tem uma estaca de aroeira dento da calcinha.
- Hahaha, é só o que tem no Rio, doido. Sô malandro velho, truta.

De súbito, o porco gira os cascos e volta pelo mesmo rastro sem dizer nada. Os dois param olhando o porco ir embora com seu colar de tucum novo.

- Quê que ta rolando, Lecoléco?
- Vô voltá pro meu lamêro. To cum sono.

Olharam-se e balaçaram as cabeças sem entenderem nada. Continuaram seguindo.

- Pô, o porco aê é sangue bom.
- Porco não, Lecoléco.
- He he he...pode crê
- "Fede pá daná, mas é gostoso", Será que aqui tem essa fruta?
- Deve ter, velho. É Nordeste. Nordeste é muito doido.



12 comentários:

  1. Puta que o pariu!!!
    Parabéns.....o olho da XV.

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  2. Fumadas as devidas proporções, o porco aí lembra o coelho do "Teleco, o coelhinho", conto do Murilo Rubião.

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  3. Não entendi essa de XV. E preciso conhecer esse coelhinho do Rubião.

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  4. E a trilha seria mais ou menos assim:

    "Sou vagabundo eu confesso,
    Da turma de 71
    Já rodei o mundo
    E nunca pude encontrar
    Lugar melhor para um vagabundo,
    Que um rio à beira mar
    Odoiá odofiaba salve minha mãe Iemanjá
    Que foi que me deram pra levar
    Pra dona Janaína que é sereia do mar
    Pente de osso, laços e fitas
    Pra dona Janaína que é moça bonita
    Que é moça bonita
    Café na cama eu gosto
    Com um suco de laranja mamão
    Iêêê e um fino em cima da mesa
    Amanhã quando você,
    Quando você for trabalhar
    Tome cuidado
    Que é pra não me acordar
    Eu durmo tarde,
    A noite é minha companheira
    Salve o amor salve a amizade, a malandragem, a capoeira
    É a capoeira."

    (Vagabundo confesso - Dazaranha)

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  5. Morador da XV DE NOVEMBER...leitor carrancudo das suas letras!

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  6. O Lelé é o personagem enigmático do conto. Não dá para saber se ele é sua prosopopeia são reais ou apenas uma ilusão da viagem dos hippies.

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  7. E no fim das contas, o Lelé é ainda o mais interado dos três... Supremo, nobre marquês...!

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  8. Hummm !!!! Deu até para sentir o cheiro da pernambucana ( ...há quanto tempo...) É Sade, a cada postagem você se supera e surpreende. Fantástico !!!!!!! Mais doido estava você quando escreveu este conto, mistura de impressionismo e surrealismo, parecendo uma paranóia de Dali combinada com uma visão de Monet. Parece que além da pernambucana o autor também tomou um tiquim de chá de cogumelo.

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  9. Não, não, Carneiro. Bebi dessa fonte assustadora há uns dez anos. Não suporto mais tamanho causador de furunco. Só vinho, cerva, x-tudo e leite.

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  10. Auashuasausaus, se fosse eu nessa história o LecoLéco tava fodido, ou melhor assado. Andando quem nem um fela da puta no sol quente, morrendo de fome e sede vocês acham mesmo que eu deixaria um porquim desse passar batido? marrapá...
    belo conto gonzo, parabéns forever...

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  11. Vender morango em Imperatriz é melhor que artesanato!!!

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  12. Esse teu estilo nem um pouco natural de escrever é irresistível.

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