segunda-feira, 11 de abril de 2011

Verdes férias

Verdes férias

Eram quase sufocantes as ansiedades e expectativas para André de apenas nove anos. Finalmente iria sair de férias para conhecer a terra natal de seu pai. Nunca, em seu curto tempo de existência, havia saído de sua concreta cidade parafernal. Não conhecia outro ambiente senão o amontoado de carros, pessoas e prédios de São Paulo. Dessa vez a gente vai,  nessas férias. Consegui juntar um dinheiro bom pra gente passar uns dias lá em casa, disse o pai umas duas ou três vezes para ele e sua mãe.

Imperatriz. Para André esse nome era um grito vibrante que ecoava em todos os cantos de seu imaginário. Desde que se entendia por gente, o pai lhe contava histórias absurdas e fantásticas de sua infância e adolescência. Dos amigos incomuns, das traquinagens, das brigas no campinho da praça em frente de casa e das surras que levava em casa por brigar na rua. Se você fosse brigar na rua, era melhor bater, pois, se apanhasse lá, iria apanhar em casa, também. E era com cipó de goiaba,  explicava o pai sorrindo.

Na noite da véspera da viagem, André não conseguia dormir. Havia um turbilhão rodopiando em sua cabecinha. Levantou-se, olhou suas malas prontas, abriu sua mochila, fechou, foi até a cozinha, tomou um copo d'água, deitou-se novamente. As histórias do pai lhe tomaram como fleshs vivazes. Nelas, projetava o pai ainda criança - pelo menos tentava. Imaginava seu pai pequeno, jogando bola, brigando com algum colega de olhos cerrados, apanhando do avô com um cipó de goiaba. "Nossa, cipó de goiaba. Deve doer paca", pensava enquanto se revirava na cama. Sua mente vagou por cantos e situações, por fantasias bem ornadas com base nas memórias do pai. Por fim adormeceu sem notar.

Chegaram cedo na rodoviária. Embarcaram em cima da hora. O trânsito até lá fora sôfrego e regado a uma interminável garoa pertinente. ajeitaram-se em suas poltronas e partiram. Quando que a gente vai chegar lá, mãe?, perguntou baixinho. Seu pai disse que é uns três dias de viagem, respondeu a mãe com um ar de lamento. "Como é longe", pensou olhando pela janela as pessoas que ficavam pra trás com suas capas de plástico e guarda-chuvas numa paisagem cinza e rebuscada. Horas depois veio a impaciência pela monotonia de não fazer nada, ficar parado, sentado ouvindo o incessante barulho do motor do ônibus. Pegou o celular e abriu um dos jogos. Jogou todos até a bateria descarregar.   

Em certo momento da viagem, André despertou de um sono meio pingado. Pôs a mão na nuca, pressionando-a com força enquanto se espreguiçava. Dormira de mau jeito. Quando se virou para a janela, pode ver um céu azul sem nenhuma mancha branca. Viu vários pontos brancos pastando, espalhados numa enorme extensão verde. Olha, mãe. Olha aquilo, gritou, puxando a manga da blusa da mãe que cochilava ao lado. Cê não sabe o que é aquilo, não?, perguntou a mãe. É boi? Nossa, mas tem muito, soltou, esbabacado com a paisagem  que via. O pai sorriu contente com a surpresa do filho.

Chegaram tarde da noite em Imperatriz. Acorda, rapaz, disse o pai batendo de leve em suas pernas encolhidas na poltrona. Ele despertou meio espantado, esfregando os olhos pesados. Olhou pela janela algumas pessoas dormindo sobre malas e mochilas, outras dormindo sobre papelões ao pé das velhas colunas de uma rodoviária calma, suja e melancólica. Olhou do outro lado e viu uma fila de banquinhas velhas de madeira cheias de enormes panelas e pequenas televisões penduradas, pessoas sentadas em volta, de ombros caídos e cabeças voltadas para seus pratos esfumaçantes. O que é aquilo, pai?, perguntou intrigado. É a melhor comida do mundo. Depois eu te levo pra provar. A esposa o olhou com o canto do olho. Cê vai dar essas comida de rua pro menino?, reclamou com rigidez para o marido. Oh, Angélica, não começa, tá?! Pegaram um táxi,  cansados e aliviados.

Ao chegarem em frente a velha casa, um senhor de uns sessenta e poucos, meio corpulento, abriu a porta para recebê-los. É seu avô, disse o pai que abaixou-se e sussurrou em seu ouvido. Ele ficou meio que atrás do pai, passando o braço em volta de sua coxa. Estava envergonhado. O pai pegou em seu ombro e o puxou de leve de encontro ao avô. Pede a bença pro seu vovô, pediu o pai com suavidade. Sem jeito, ele estendeu a pequena mão que se perdeu na pedrada mão do avô. Não pôde deixar de pensar no cipó de goiaba. O velho o suspendeu subitamente a altura dos olhos para olhá-lo direito. Rapais, tu é bonito. Parece com tua vó, disse olhando pro filho. 

Todos se abraçaram. Houve lágrimas de saudades por parte da mãe que preparou um café pro filho e sua nora. Conversaram sobre a viagem, sobre como e cidade cresceu. Conversaram até tarde. André já dormia a essa altura. Dormia no antigo quarto que o pai deixou. Os pais dormiram no quarto dos avós e os avós dormiram em redes estendidas na sala. Assim ficou combinado por insistência do velho.

Na manhã seguinte, André acordou por volta das dez e meia. Compensara os sonos perdidos no ônibus. Abriu os olhos e estranhou as telhas envelhecidas. Nunca havia dormido numa casa sem forro. Não queria se levantar. Tentou dormir mais um pouco. Virou-se e viu uma janela de madeira trancada por ferrolhos enferrujados. Levantou-se e a abriu. Ela dava para um beco meio largo que dava para a parede de outra casa. Na parede havia outra janela aberta. Dela emanava uma música velha e ininteligível. Passou os olhos pelo beco de ponta a ponta. O piso era esverdeado pelo lodo seco. Reconheceu a avó na ponta do beco que dava para o quintal. Ela estava jogando umas sacolas de lixo numa bacia de plástico. Ela avistou sua pequena cabecinha para fora que rapidamente recolheu para dentro como uma tartaruguinha. 

Sua mãe entrou no quarto com um copo de café com leite. Toma, filho. Toma e vamo na pracinha. Ela é bonita e cheia de árvores. Tem um campinho de areia e uns balanço, disse a mãe esperando ele terminar com o copo. Onde que tá o pai?, peguntou calçando os tênis. Foi na Feira com seu avô. A praça ficava em frente a casa. Não havia ninguém, mas, ela era, mais ou menos, parecida com o que ele havia projetado em sua mente. Cheia de árvores das várias espécies, a praça era meio arredondada. Suas bordas possuíam um tapete de grama já para ser aparada. Um enorme banco de cimento rodeava seu centro arborizado. Pôde ver uns balanços e um escorregador velho sobre um espaço circular de areia rodeado por outro banco de cimento. 

A mãe sentou-se no banco e se pôs a olhar, de cima a baixo, um enorme pé de amêndoa em sua frente. André sentou-se em um dos balanços e o fez girar em velocidade consigo vendo as árvores passarem como um filme acelerado. Ficaram assim, sem dizer nada,  ouvido a algazarra melódica dos pardais. Dentre o canto dos pássaros,  havia um que o fez apurar os ouvidos. Era um canto diferente. Mais afinado e bem mais trabalhado. Parecia ser a melodia do hino nacional. Ele ficou intrigado. Procurou nas copas, nos galhos, levantou-se e procurou até onde a vista alcançasse. Não encontrou o dono daquele canto que o chamara a atenção. Pensou em perguntar a mãe, mas, ficou calado no balanço só ouvindo. Viu a avó olhando-o pela janela da frente. Ela sorriu pra ele com ternura, ele devolveu com um sorriso introvertido.

O pai chegou com o avô e algumas sacolas com frutas, verduras e peixe fresco. Deixaram as sacolas na mesa da cozinha e deixaram as mulheres fazerem o resto. Pegaram duas cadeiras de macarrão e foram para a praça. André foi atrás. O avô puxou conversa com ele sobre como ele andava na escola, se estava gostando de estar ali. André disse que sim e aproveitou para perguntar sobre algum pássaro que ele ouvira cantar de forma diferente. O velho pôs a mão em seu ombro e apontou com a outra para uma casinha toda solta perto da deles.

André seguiu a indicação do avô e avistou a casinha solta. Em frente tinha um pequeno pé jambo e em um de seus galhos havia pendurada uma gaiola contendo um imponente pássaro. Foi aquele alí que tu ouviu, disse o avô. Que pássaro é aquele?, peguntou. É Chico Preto, é pai?, adiantou o pai do menino. Não! É um Currupião. É do véi Vicente. Se lembra dele não?, perguntou o velho a seu filho. Lembro sim. Ele sempre gostou de criar passarinho. Eu me lembro que ele matava os gato tudo da vizinhança. Matava? Por quê?, perguntou André com olhos curiosos. Pra não chegar perto dos passarinho dele, repondeu o pai sorrindo. Ele matava como?, perguntou tentando entender aquilo tudo. Matava com chumbinho. O que é chumbino...? É veneno de rato. 
    
Vai lá vê ele, disse o velho ao André. Mas, num pega na gaiola, não. O Vicente é injoado com o diabo do passarin dele. Ele levantou-se, atravessou a rua e chegou perto. Era um belo corrupião. Comia uma lasca de maçã. André encostou mais o rosto e ficou fascinado com a vibrante coloração amarelo-alaranjada no peito do pássaro em contraste com preto que ia de sua cabeça, passava pelas costas e se estendia por sua empinada calda. O pássaro parou de comer e o olhou de lado. Tinha um olhar penetrante, o globo ocular se movia rapidamente como se o analisasse de cima a baixo de forma zombeteira. Girou a cabeça e voltou a bicar o pedaço de maçã com seu longo e afinado bico de lança. Parecia que André já não existia mais, ali.

Numa tarde de sábado, André estava sentado na janela da frente olhando uns garotos jogar bola no campinho de areia. Achou graça quando um dos meninos pôs toda a força que tinha para chutar a bola, errou o chute e chutou o vento. Foi tão forte que a perna foi para cima e seu corpo caiu na areia. Todos riram a gaitadas. Vai lá jogá, com eles, pediu a avó que estava sentada no meio-fio da calçada. André já se sentia em casa, aquela altura. Por quê não? Pensou. Sentiu-se encorajado a ir, mas, ouviu o canto do corrupião a três casas dali. Permaneceu na janela a prestigiá-lo.

O velho dono do pássaro saiu de dentro da casa e abriu a portinha da gaiola, pegou-o no dedo, deu um beijo na ponta de seu bico e o pôs numa galha. O corrupião cantou um pouco mais e voou para a copa de uma imensa árvore no meio da praça. André ficou encabulado. Não entendera a atitude do velho que entrou na casa sem preocupação alguma. Saltou da janela e ficou olhando a gaiola com a porta aberta, depois se dirigiu à avó peguntando o porquê daquele ato. Calma, bebê. Ele vai voltá. Só foi dá uma volta por aí. Quando ele tivé fome ou sono ele volta pra gaiola. De vez em quando o véi Vicente solta ele pra dá uma voltinha, explicou pacientemente, a avó enquanto passava a fina mão nos cabelos da parte de trás de sua cabeça. Ele resolveu que iria esperar. Esperou até anoitecer e o corrupião não voltou. Foi dormir com isso na cabeça. Onde ele tá, será? Se perguntou até cair no sono.

Acordou cedo, no dia seguinte. Não quis tomar café. Recusou o convite para ir a feira fazer as compras de domingo com os pais e a avó. Foi para a calçada. Viu o corrupião no galho de jambo e seu dono sentado em um tamborete limpando a gaiola. Ficou contente ao revê-lo, levantando uma das asas para coçar as costelas com o bico. O velho pôs sua água e sua comida na gaiola, em seguida o pegou pelo dedo e o pôs dentro. Pendurou a gaiola no galho, entrou na casa, saiu com uma bicicleta, trancou a porta, montou na bicicleta e dobrou a esquina.

Sentou-se na calçada esperando o pássaro cantar. Olhou para a praça vazia. Pôde sentir a satisfação dentro de si que se espalhara por todo o seu corpo. Não queria ir embora dali nunca mais. Levantou-se e foi até a gaiola. Estava alta para ele. Queria ver o corrupião de perto. Pegou o tamborete, olhou ao redor e não viu ninguém. Subiu no tamborete e esticou os braços. Só a ponta dos dedos conseguia tocar na gaiola. Esticou mais ainda. Ficou na ponta dos pés. Conseguiu pegar a gaiola, os pés escorregaram. O couro do tamborete era liso, tentou se apoiar para não cair. Apoiou-se na gaiola e caiu junto com ela. Com a queda, seu peso pressionou o tamborete de forma que quebrou a gaiola. Levantou-se de um susto e viu que o pássaro agonizava com o bico despedaçado embaixo de uma das pernas do tamborete.

Sentiu um golpe súbito que fez seu coração acelerar. Todo o seu corpo esmoreceu e gelou. Saiu dali em disparada, sentou-se na calçada dos avôs, olhou para o corrupião ali se debatendo, no meio da calçada, até estufar o peito luzente, aspirar em pequenas borbulhas de sangue e ficar imóvel. Levantou-se, foi para o beco, sentou-se embaixo da janela da casa ao lado. A mesma música ininteligível saia de lá. Pensou no cipó de goiaba, nos bois pastando. Queria estar lá no pasto, deitado olhando os bois. Encolheu-se, mais ainda. As mãos estavam frias. Chorou com força,  em silêncio, sentindo um aperto agudo dentro do peito.

10 comentários:

  1. Dá até pra sentir a dor profunda do menino.

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  2. Muito bom este conto. Desfecho surpreendente como todo bom conto merece.
    Esta história (ou estória) me fez relembrar minha infância, e nos entremeios do texto meus olhos chegaram até marejar um simulacro de lágrima.

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  3. Trágica, envolvente, um primor de estória. Bravo.

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  4. Pintou a nostalgia....lembrei aqui...salva latinha, polícia x ladrão,carro de rolimão!?!,juntar capa de cigarro,travinha,peteca,brigas,misturar remédios em seringas no quintal da farmácia ziroca (se fosse hoje estaria morto),peixe,garrafão,tocar campainha e correr e outras missões.
    Belo post!

    OLHO DA XV

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  5. Lindo texto! De uma delicadeza e sensibilidade enormes que eu sei que tu também tem, além de saber escrever bem. Realmente nos traz uma dor.

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  6. Caralho... acho que já disse isso, mas seu texto não é literário, é texto de roteiro cinematográfico. Parece que vc visualiza a cena, depois escreve. O que pinta na hora são os detalhes, como as várias características físicas dos personagens, suas reações e até alguns esboços de caráter. Muito legal, muito legal mesmo! E melhor ainda é saber que vc está no caminho certo.

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  7. Boa noite,

    Um texto bonito, singelo e bem escrito. A criança sentiu uma dor que nunca mais deve ter esquecido...Triste.


    Obrigada pela visita e comentário lá no Desnuda.


    Beijos com carinho.

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  8. Se vc se fez presente no puta show do lobão...tá na hora de postar!

    OLHO DA XV....

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