quarta-feira, 30 de junho de 2010

Os derrubados

Os derrubados
Ele chegou um pouco eufórico e meio preocupado. Quase quebrou a arcaica campainha ao apertá-la. Dois dedos secos puxam, levemente a cortina por traz do vidro da pesada porta, deixando aparecer metade de um rosto velho, frio e magro. A porta é aberta.
- Onde ele está?- pergunta o enorme homem, depositando a pesada mão sobre o caido ombro esquelético do recepcionísta.
- Está no antigo escritório. Odeio quando ele fica lá por muito tempo. Sempre fica remoendo o maldito passado. Desde quando tudo começou.
- Ele está ficando cada vez mais difício - suspira o enorme visitante que tira os óculos e esfrega uns olhos tristonhos.
- É a idade, meu caro. Ela é rude com o tempo. Principalmente se tratando de um homem como ele - responde o velho fria e mecanicamente, se apoiando numa modesta bengala de carvalho e estendendo o braço em direção ao antigo escritório.
- Vou vê-lo.
- Ah, sim. Ele está bebendo à algum tempo.
- Bebendo? Meu Deus!
Atravessou o corredor que dava para o escritório. A porta estava entreaberta. Viu ele de costas, sentando numa grande poltrona olhando pela longa janela as árvores banhadas pela luz da lua. Aproximou-se. Notou uma garrafa vazia de vinho no chão e outra recém-aberta na mesa.
- O que está acontecendo? - perguntou com surpresa - Você não é assim. Aparenta estar derrubado.
- E não estou? - responde olhando as árvores.
- Meu Deus. Você não é assim.
- Eu sempre fui assim - gritou se ajeitando na poltrona - , você sabe disso. É fácil pra você ficar aí, de pé com essa cara de compaixão e esperança. Afinal de contas, você pode tudo e sempre vai poder, não é?
- Não encare tudo dessa forma. Eu...
- Não me venha com essa merda toda. Só fala isso porque não é um maldito velho como eu. Tudo pra você sempre foi mais fácil.
- Então é isso? Você se sente derrubado pelo tempo e passa a se odiar e atingir os outros?
- Você nunca será derrubado, não? Você se acomodou. Você pode tudo e sempre irá poder. Mas, se acomodou. Se tornou um produto. Fizeram até uma estátua de bronze em sua homenagem. Grande merda.
- Não fale assim comigo - despejou o enorme visitante apontando o dedo em sua direção - , você está bêbado e louco. Sempre me julgou. Sempre julgou minhas atitudes. Eu sempre procurei fazer a coisa certa e você sabe disso.
- Mas, se acomodou. Eu não posso fazer o que você pode. Você tem tudo.
- Tudo? O que quer que eu faça? todos cobram de mim. Todos me sufocam. Até a maldita estátua de bronze me sufoca.
- É, eu sei. E como sei - balbuciou, passando a mão nos grisalhos cabelos. O vinho já lhe pesava a cabeça. O clima ficou mais ameno. Encheu a taça. Tomou um grande gole e enxugou os lábios na manga da camisa.
- Quer um pouco?
- Sabe que não bebo. Nem você. Por quê isso?
- Não me resta fazer mais nada.
- Claro que sim. Você é um homem poderoso.
- Não. Sou só um velho inútil.
- E acha sensato ficar se afundando no passado? E eu é que sou o acomodado.
- Droga, você tem razão. Somos todos iguais. Nos tornamos uns fracos.
- Acho que essa foi a coisa mais importante que aprendi em toda a minha vida. A fragilidade.
- É, moleque, e se deixou levar por ela. Se deixou levar por essa merda toda, aqui - disse tentando se levantar para pegar outra garrafa. Tombou e caiu no chão. O amigo tentou ajudar, mas, ele não quis. Levantou-se na marra.
- Teimoso como sempre - reclamou de forma fraternal.
- É, estou vendo, hahahaha... - se pôs à gargalhar fortemente.
- Ora, porra, o que é?
- Nunca pensei que veria uma cena tão deplorável.
- Não conte isso pra ninguém.
- Ok, pode deixar - afirmou, ainda rindo da situação.
- Sua mulher deve estar furiosa. Já é quase de manhã.
- Ah, não. Eu avisei que iria chegar mais tarde. Disse que iria cuidar de um velhote amigo meu.
- Foda-se. Mas, obrigado por vir. Desculpe pelas torpesas dessa noite.
- Não se preoculpe. Acho que no fundo somos todos uns acomodados.
- É verdade. Somos um bando de escravos da convivência - lamenta, contemplando a tonalidade do vinho na taça devido aos primeiros raios do sol que vão penetrando pela imensa janela.
- Pois é. Às vezes somos escravos de alguma coisa. Talvez seja por isso que fomos grandes homens, Bruce.
- É, Clark, fomos bons homens.

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